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Após Postone – Roswitha Scholz

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 87 leitura mínima

 

Sobre a necessidade de transformação da ‘crítica do valor fundamental’. Moishe Postone e Robert Kurz em comparação – e a crítica da dissociação-valor

No texto são postas em destaque as diferenças entre Kurz e Postone do ponto de vista do “individualismo metodológico” (incriminado por Kurz). Expressas em termos esquemáticos, essas diferenças funcionam assim: enquanto Kurz insiste em ler “O Capital” como um todo e só depois observar a forma da mercadoria, situação em que o terceiro volume de “O Capital” assume importância, justamente para o processo das categorias reais de um colapso/decadência do capitalismo hoje observável também empiricamente, Postone agarra-se às primeiras 150 páginas de “O Capital” e desenvolve a partir daí o curso do capitalismo, sem consequências em termos de teoria da crise. Postone recorre basicamente à forma da mercadoria, Kurz à forma do capital. Ao mesmo tempo, Postone defende implicitamente um ponto de vista que tende a ser ideologicamente complacente com a classe média, não em último lugar porque coloca em primeiro plano sobretudo a ecologia, enquanto Kurz, bem consciente da questão ecológica, desmascara simultaneamente os interesses de classe média como ideologia; em Postone, no fundo, existe um “limite interno” apenas no plano da ecologia, mas não no da economia.

Posto isto, Postone e Kurz (pelo menos no seu último livro “Dinheiro sem Valor”) movem-se ambos no plano do capital como processo total. O plano da “dissociação do feminino” em relação ao valor (mais-valia), entendido em termos de dialéctica negativa, não surge em nenhum deles ou surge apenas secundariamente. Da perspectiva da crítica da dissociação-valor, no entanto, os diferentes planos, o plano material, o cultural-simbólico e – last, but not least – o psicanalítico terão de ser relacionados entre si, em seu entrelaçamento dialéctico e simultânea separação, no seu desenvolvimento processual. Só assim poderá ser suplantada a totalidade negativa, para além do individualismo metodológico androcêntrico, bem como do universalismo androcêntrico, que na realidade caracteriza essencialmente a decadência de crise do patriarcado capitalista. (Resumo na Revista EXIT! nº 12)

Introdução

Postone é considerado um clássico da crítica do valor fundamental (ainda que nunca tenha usado esta expressão). Ele formulou as suas conclusões fundamentais sob diversos aspectos, ao que parece apenas com um pequeno defeito estético: a falta de uma teoria da crise. No contexto da conclusão de que a elaboração teórica também tem um “núcleo temporal” (Adorno) gostaria de mostrar que isto também se aplica à crítica do valor fundamental e a Postone. Pois houve entretanto uma série de modificações nos últimos trinta anos, das quais a mais importante é a correcção pela crítica da dissociação-valor. Robert Kurz efectuou também correcções decisivas no livro Dinheiro sem valor, tendo consumado de certo modo uma capitalturn: já não é a forma da mercadoria que está no centro da crítica, mas a forma do capital, o fetiche do capital. Em ligação com isto Kurz zurze o “individualismo metodológico” de diversas abordagens marxistas que fazem da forma da mercadoria o cerne do capitalismo (Kurz, 2012). Aqui ele deixa de lado em grande parte Moishe Postone, cuja interpretação de Marx é ou era aparentada com a sua própria concepção. Gostaria agora de retomar isto, pelo menos em alguns aspectos. Aqui deve estar em primeiro plano a questão do “individualismo metodológico” e, neste contexto, a da relação entre estrutura e acção/sentido, entre subjectividade e objectividade, entre concretude e abstractude, entre dimensão micro e macro e afins. Isto deve ocorrer não em último lugar também porque Kurz acusa mais ou menos implicitamente Postone, entre outras coisas, de uma elaboração teórica funcionalista, que negligencia a acção, o sentido, a consciência e afins como dimensões essenciais da teoria crítica.

Trata-se, portanto – se se quiser – de uma problemática de teoria do conhecimento (no entanto sem nunca deixar de reconhecer que a teoria do conhecimento já tem de ser sempre teoria social). Provar-se-á um procedimento diferente em Postone e em Kurz, sobretudo contrapondo citações palavra por palavra de Kurz e Postone; assim é preciso combater uma leitura meramente superficial de Kurz e Postone que se perde na semelhança e na comparabilidade de ambas as abordagens, sendo a transição de Kurz da forma da mercadoria para a forma do capital entendida como mero “deslocamento da tónica”.

A concluir entro depois ainda brevemente no metaplano da forma da dissociação-valor, uma forma com a qual, a meu ver, se trata de facto da consequência para o entendimento da totalidade do patriarcado capitalista juntamente com as correspondentes novas disparidades sociais na pós-modernidade tardia que não são de modo nenhum tidas em conta de modo sistemático no contexto da crítica do valor “clássica”.

A argumentação de base de Postone

Segundo Postone, mercadoria e valor são o fundamento da mais-valia e do capital em Marx. Assim, valor e trabalho são importantes apenas para a socialização capitalista. Segundo Postone, o trabalho não pode ser considerado trans-histórico, como no marxismo tradicional, segundo o qual os capitalistas se apropriam da mais-valia e os trabalhadores são explorados. As categorias marxianas são aqui afinal condições de vida e de existência no capitalismo, tanto na dimensão subjectiva como na objectiva. O que também se aplica à categoria dinheiro. Tais categorias, na sua generalidade abstracta, são válidas apenas para o capitalismo. O valor é o fundamento da produção capitalista, “uma forma de riqueza historicamente específica do capitalismo, que o afasta da riqueza ‘real’. Enquanto a primeira se baseia no dispêndio directo de força de trabalho humana, a segunda mede-se na produção de bens e depende de uma multiplicidade de factores naturais e sociais, incluindo também o saber da sociedade. O valor está na base de um sistema de produção dinâmico… que leva a um enorme crescimento da produtividade.” (Postone, 2013, p. 372) A mercadoria é para Postone o ponto de partida da análise do capital de Marx e isto como forma social, não apenas como mercadoria concreta. Ela é a forma da objectividade e da subjectividade sociais, também em relação às “categorias culturais” (Postone, 2013, p. 389) A importância das categorias valor, mercadoria, trabalho concreto e abstracto apenas no desenvolvimento destas se torna depois clara. O trabalho tem um carácter duplo; trabalho concreto é em primeiro lugar o que é em todas as sociedades: mediação entre o ser humano e a natureza. Trabalho abstracto aqui não é o somar de trabalho concreto, mas transmite no capitalismo uma nova forma de dominação social que já não está baseada em dominação pessoal, relações de parentesco, normas tradicionais etc. “De acordo com Marx, portanto, o trabalho no capitalismo tem de ser entendido tanto trans-historicamente e correspondendo ao uso normal da palavra como também no sentido de uma forma de dominação social historicamente específica. Ele objectiva-se assim tanto em produtos concretos do trabalho como também em formas objectivadas de mediação social. Com isto estamos perante o cerne da concepção marxiana de mercadoria e capital.” (Postone, 2013, p. 375) Na consciência normal, nem a dimensão concreta nem a abstracta são aqui percebidas como socialmente construídas, mas sim imaginadas como naturais.

A riqueza material é aqui por assim dizer a dimensão de valor de uso do trabalho. O valor, pelo contrário, é expressão do trabalho abstracto e baseia-se no dispêndio de tempo de trabalho humano. O valor é aqui uma forma de riqueza e simultaneamente uma forma de “mediação social”. Para a forma social é assim decisivo que “enquanto o trabalho individual como trabalho concreto é particular e parte de um conjunto qualitativamente heterogéneo, como trabalho abstracto ele é um momento individualizado de uma forma qualitativamente homogénea de mediação social, que constitui uma totalidade social” (Postone, 2013, p. 377, destaque no original). Trata-se aqui de um contexto de práxis que se autonomizou perante os seres humanos. Estes são agora “cada vez mais (submetidos) a imperativos e coerções impessoais e racionalizadores” (Postone, 2013, p. 377). Daí resulta uma dominação anónima que pouco tem a ver com dominação de classe.

Esta dominação é segundo Postone fundamentalmente do tempo. Neste contexto, o tempo abstracto newtoniano comanda as pessoas. “Logo que o capitalismo se desenvolveu plenamente, aumentos de produtividade contínuos determinam em novos moldes a unidade de tempo (abstracto) – e na verdade nela se impelem de certo modo para a frente. Trata-se aqui de um movimento do próprio tempo. Movimento que por isso não pode ser apreendido no quadro do tempo newtoniano, mas exige um quadro de referência superior, no interior do qual o quadro do tempo newtoniano é movido para a frente. O que primeiro surge como variável independente no interior de um quadro é dependente no outro. Este movimento do tempo pode ser designado como tempo histórico. (Postone, 2013, p. 379, destaque no original) O tempo histórico está assim entrelaçado com o tempo abstracto. O resultado disto é o valor que se valoriza a si mesmo e o seu movimento processual que caracteriza o capitalismo na sua essência: “O capital, portanto, é uma corrente abstracta por trás do domínio das aparências, um imparável processo de auto-expansão do valor, um movimento orientado sem telos exterior, que gera ciclos de grande dimensão de produção e consumo, de criação e destruição” (Postone, 2013, p. 380, destaque no original)

O contexto do cerne da argumentação de Postone é assim o seguinte: “Em O Capital Marx radica a dinâmica histórica do capitalismo no duplo carácter da mercadoria e, portanto, no capital. Como forma de riqueza historicamente específica e determinada pelo tempo, o valor está na base de uma pressão contínua para o aumento da produção que caracteriza a produção capitalista. Uma vez que o valor é apenas uma função do tempo de trabalho socialmente necessário, o aumento da produtividade geral da sociedade tem por conequência grandes quantidades de riqueza material, mas não o aumento da produção de mercadorias por unidade de tempo. Esta circunstância gera por sua vez um novo crescimento da produtividade. Esta dinâmica dialéctica entre valor e valor de uso está logicamente implícita na descrição feita por Marx do tempo de trabalho socialmente necessário, na sua análise preliminar da forma da mercadoria, e torna-se depois explícita com o desenvolvimento do conceito de mais-valia e de capital. Se a categoria da mais-valia é entendida apenas como categoria da exploração, como mais-valia mas não como mais-valia – por outras palavras, não como mais de uma forma de riqueza temporal – a dialéctica por ela desenvolvida não pode ser adequadamente percebida.” (Postone, 2013, p. 381, destaque no original)

Aqui a introdução da mais-valia relativa desempenha para Postone um papel importante: “Com a introdução da categoria da mais-valia relativa, a lógica da abordagem esboçada por Marx nos primeiros capítulos de O Capitaltorna-se uma lógica histórica, marcada pela aceleração do tempo. Uma vez que a mais-valia relativa, segundo Marx, é consequência do aumento da produtividade, a fim de reduzir o tempo necessário à reprodução do trabalhador, para gerar um determinado aumento de mais-valia a produtividade tem de ser tanto mais aumentada quanto mais alta já é a produtividade geral da sociedade.” (Postone, 2013, p. 382 sg) No entanto ele não chega assim a uma teoria da crise que tenha em conta a crise fundamental da socialização da dissociação-valor, mas parte da hipótese de um capitalismo perpétuo. “A dinâmica histórica do capitalismo gera portanto incessantemente o novo, restabelecendo simultaneamente o mesmo.” (Postone, 2013, p. 383, destaque no original) Postone vê aqui o perigo do colapso ecológico e da produção de supérfluos, se não se perceber a possibilidade de uma transformação social que actualmente resulta da contradição entre matéria e forma na sua dimensão temporal.

Individualismo metodológico, estrutura-acção e afins

Por “individualismo metodológico” entende Kurz o seguinte: “O conceito de individualismo metodológico é aqui entendido num sentido mais lato do que o é muitas vezes nas ciências sociais, com destaque para a economia, isto é, não apenas referido lógica e imediatamente às acções dos indivíduos (na economia política: do homo oeconomicus), mas, de um modo geral, a algo idealmente individual; ou seja, também no sentido institucional ou categorial. Nesta medida, o individualismo metodológico consiste, no essencial, em pretender expor e explicar uma lógica abrangente e determinante para um todo com base no caso individual e isolado, que então figura como ‘modelo’, entendendo-se como tal não apenas acções individuais definidas como ‘fundamentais’, mas também formas estruturais, designadas por ‘embrionárias’, ou partes elementares tratadas como algo idealmente individual. É possível estender este procedimento a ‘metamodelos’, em que se supõe que o todo volte a apresentar-se de um modo ideal-típico; mas é justamente com base numa lógica de actos, estruturas ou partes elementares individuais (aqui de índole económica) que são insuflados ou ‘agregados’ a grandezas e relações respeitantes à sociedade no seu todo.” (Kurz, 2012, p. 59 sg / 53 sg) (1)

Perante este pano de fundo, Kurz não só critica o facto de em muitos marxismos estar por detrás da análise do capitalismo a forma simples da forma da mercadoria, considerada como forma de nicho da lógica do capital, coisa que historicamente não pode de facto ser verificada, mas também relaciona a noção de “individualismo metodológico” com o conceito de capital. Para ele “aqui o que está em causa não é apenas a relação entre a forma da mercadoria e a forma do capital enquanto tal, ou entre a forma da mercadoria e a forma do dinheiro como meras manifestações da forma do capital… mas igualmente a relação entre a mercadoria individual ou o capital individual e o capital global ou a totalidade do contexto social que Marx, no terceiro volume, designa por ‘processo global’”. (Kurz, 2012, p. 167/148) Também a relação sujeito-objecto corrente é afectada por isso: “Neste quadro, a própria oposição entre sujeito e objecto provém apenas do modo de percepção do fetiche do capital moderno… Marx falou… como é sabido e a justo título, do ‘limite interno’ do capital, o que, por muitas voltas que demos, não pode ser interpretado como mera resultante de intenções subjectivas.” (Kurz, 2012, p. 236/211) “Não altera nada neste quadro que o objecto ou circunstância pressupostos não sejam um processo natural ou uma máquina, mas a sociedade humana sob a dominação do fim-em-si capitalista… é um facto que a acção subjacente também é consciente mas, nas condições do capitalismo… daí resulta a situação paradoxal de a consciência se limitar ao pormenor (à acção individual, empresarial ou estatal), ao passo que a generalidade ou o contexto global se torna um processo inconsciente… no plano macro, (reina) a total inconsciência… É precisamente nisto que consiste o escândalo da socialização fetichista.” (Kurz, 2012, p. 237 sg / 212) Com isto ele também se demarca do entendimento da relação de valor como relação de validade, que – de certo modo como de acordo com a ideia de fundo – é sobretudo um produto da acção: “Mas se a crise não residir no mero conflito em torno de ‘relações de validade’ [Geltung] subjectivas, mas na ‘validade’ [Gültigkeit] da ‘riqueza abstracta’ reificada e do seu movimento de valorização autonomizado, também o seu motivo último terá de ser procurado numa contradição interna objectiva desse processo.” (Kurz, 2012, p. 237/211).

Postone também parte do capital como sujeito-objecto da história – mas tendo sempre como pano de fundo a mercadoria individual, a forma da mercadoria como verdadeira raiz. A teoria de Marx é “uma teoria da constituição histórica de formas sociais específicas que são simultaneamente formas de objectividade e de subjectividade sociais”. Também para Postone não há qualquer vulgar sujeito individual ou colectivo, também para ele central é a “constituição de formas sociais”: “No âmbito dessa teoria, as categorias… e as normas de acção podem ser vistas como ligadas na medida em que ambas, em última análise, são baseadas na estrutura das relações sociais” (Postone, 2003, p. 333/253) situação em que as categorias sociais percebidas são constituídas pelo trabalho, não pelo trabalho concreto, mas pelo trabalho como mediador constitutivo do fetichismo. “A teoria… da práxis social no capitalismo é, assim, uma teoria da constituição pelo trabalho das formas sociais que medeiam as relações entre as pessoas umas com as outras e com a natureza, e são simultaneamente formas de ser e de consciência.” Estas “não podem ser apreendidas no plano imediato apenas da interacção” (Postone, 2003, p. 335/255). Daí segue-se para ele que: “Uma formulação adequada da teoria de Marx da constituição das formas de subjectividade e objectividade no capitalismo deve analisar a interacção entre estrutura e práxis em termos da dinâmica contraditória da totalidade; sobre essa base poder-se-ia desenvolver uma teoria da transformação histórica da subjectividade que elucidaria a constituição social e histórica do desenvolvimento das necessidades e percepções” (Postone, 2003, p. 341/259) Assim se imagina Postone para além do “funcionalismo”: “É uma teoria não funcionalista da subjectividade social que é baseada, afinal, na análise das formas de relações sociais… A teoria de Marx… busca, de facto, apreender a vida social em categorias que lhe permitam tratar a estrutura do significado como um momento intrínseco de uma estrutura de relações sociais constituídas e constituidoras.” (Postone, 2003, p. 342 sg / 260) Em oposição a isto até parece que Kurz argumentaria de modo puramente funcionalista. 

No entanto, o insistir de Kurz no plano macro, no processo objectivo de modo nenhum é tão pobre de acção, ignorante da consciência e afastado da práxis (no sentido amplo de práxis social) como uma leitura superficial poderia sugerir: “A intencionalidade ‘livre’ no plano micro converte-se num exercício mecânico da objectividade no plano macro, por um lado, e num modo irracional de reagir (ideologia) a este processo e aos seus resultados, por outro. Nesta inversão estão necessariamente lançadas as bases da crise, uma vez que o ‘sujeito automático’ nem pensa nem age enquanto tal, não sendo outra coisa senão a forma cega que se encontra a priori na base da acção humana; mais concretamente, é a forma de um movimento, de um processo dinâmico a que a concorrência universal intrínseca a essa forma obriga.” (Kurz, 2012, p. 263/235)

É justamente em Kurz que o capital como sujeito-objecto da história tem a mais elevada prioridade que, no entanto, não é possível derivar da mercadoria. Isso corresponderia a um procedimento ele próprio orientado pelo individualismo metodológico. Pelo contrário, será preciso colocar a questão crítica da ideologia de “como o valor é constituído pelas pessoas e pode ser operacional, embora elas ignorem sua existência”, como também Postone constata no fim do seu livro (Postone, 2003, p. 595/459). Aqui se encontram de facto Kurz e Postone, mas não pode haver dúvida de que Kurz vê aqui o lado objectivo como decisivo, considerando assim como subordinada a dimensão da acção, que para ele no entanto existe absolutamente. Esta última surge nele com mais força que em Postone como crítica da ideologia. Nesta perspectiva, a pretensão de não perder de vista a dominação anónima é na verdade muito mais conseguida em Kurz do que em Postone. 

Forma da mercadoria e forma do capital

O conflito nuclear entre Kurz e Postone é aqui a diferente relação entre forma da mercadoria e forma do capital. É verdade que ambos partem da mesma contradição de base: esta é “o ponto fulcral tanto da teoria radical da crise que vai até ao fundo das coisas, como igualmente da crítica e ultrapassagem do fetiche do capital que vai até ao fundo das coisas, a saber, a distinção e oposição estrita entre matéria e forma, entre produtos concretos e objectualidade do valor abstracta” (Kurz, 2012, p. 249/222). Mas Kurz toma aqui como verdadeiro ponto de partida o capital e não o fetiche da mercadoria. Escreve ele: “Do verdadeiro contexto de mediação complexo do ‘processo global’ apenas se fala no terceiro volume, embora aí já se encontre numa relação de tensão não resolvida face à análise da forma do valor ou da mercadoria que consta do primeiro volume, ainda fixada na mercadoria individual ideal-típica. Se o capital for o verdadeiro pressuposto da forma da mercadoria, continua ainda assim a aplicar-se que o capital global ou o ‘processo global’ do capital tem de ser o verdadeiro pressuposto do capital individual e, com ele, também da mercadoria individual. Desta perspectiva, que faz seu um entendimento dialéctico da totalidade e já não segue o individualismo metodológico…, a exposição de Marx só pode referir-se, no fundo, ao todo mediado em si mesmo da relação fetichista do capital. As categorias reais do capital que são objecto da exposição teórica de Marx devem, por isso, ser entendidas desde o início e em todos os planos da exposição como meras categorias do todo social, do capital global e do seu movimento global, enquanto massa global que não pode ser abarcada de uma forma empírica imediata porque, tanto em termos qualitativos como quantitativos, é diferente do movimento empírico dos capitais individuais. No entanto, este último é o único que se apresenta aos actores na prática, ao passo que o verdadeiro movimento do capital global real só pode ser registado de forma empírica com base nos seus efeitos sociais (sobretudo em tempos de crise). (Kurz, 2012, p. 176 sg / 156 sg) Aí ele critica mesmo Marx: “O problema da exposição de Marx acaba por dever-se ao facto de o ‘começo’ na figura da análise da forma do valor conduzir, mesmo sem querer, à armadilha do individualismo metodológico – o que não só se aplica à lógica trans-histórica suposta ou integrada da forma da mercadoria ‘simples’, mas igualmente à própria análise do capital. As determinações elementares da forma do valor da mercadoria enquanto momento do capital nem sequer podem ser desenvolvidas com base na mercadoria individual… As determinações analíticas da forma da mercadoria e do capital só podem ser derivadas da análise conceptual da relação global.” (Kurz, 2012, p. 169/150)

Também Postone parte do princípio de que só no capitalismo se pode falar da categoria mercadoria, ela não é uma categoria da história real que sempre tenha existido. Ao contrário de Kurz, no entanto, Postone parte da mercadoria como forma elementar do capitalismo – ainda que ele também não parta da mercadoria concreta, mas da forma da mercadoria: “Partindo da categoria da mercadoria como forma dualística (valor de uso e valor de troca, trabalho concreto e trabalho abstracto, R. S.), unidade não idêntica, Marx desenvolve a sociedade capitalista como estrutura abrangente da totalidade, bem como a lógica intrínseca do seu desenvolvimento histórico e os elementos da experiência social imediata que esconde a estrutura fundamental desta sociedade. Para a crítica marxiana da economia política, a mercadoria é a categoria essencial no coração do capital; ele a revela para iluminar a natureza do capital e a sua dinâmica intrínseca.” (Postone, 2003, p. 217/164 sg) É aqui perfeitamente claro que Postone cairia sob o veredito kurzeano do individualismo metodológico. Também Postone parte do princípio de que os três volumes de O Capital têm de ser lidos como tal: “O modo de exposição de Marx nos primeiros capítulos de O capital tem sido visto frequentemente como histórico, pois começa com a categoria da mercadoria, em seguida considera o dinheiro e depois o capital. Mas esta progressão não deve ser interpretada como uma análise de um desenvolvimento histórico imanentemente lógico que leva do aparecimento inicial das mercadorias até um sistema capitalista completamente desenvolvido… Uma vez que se apresenta um desenvolvimento histórico lógico destinado a levar ao capitalismo – como na análise da forma de valor no primeiro capítulo de O capital – essa lógica deve ser entendida como retrospectivamente aparente e não como imanentemente necessária. (Postone, 2003, p. 203/153 sg, destaque no original) “O desenvolvimento da exposição de Marx entre o primeiro e o terceiro volumes de O capital deveria, portanto, ser entendido não como um movimento de abordagem da “realidade” do capitalismo, mas como abordagem das suas múltiplas formas na aparência superficial.” (Postone, 2003, p. 209 sg / 159) Kurz diz, por outro lado: “O dualismo dos planos categorial e empírico deve-se unicamente ao ‘problema da exposição’ analítico-teórico, que se vê na obrigação de isolar mentalmente as categorias abstractas para sequer tornar possível o conhecimento. Na realidade, porém, os dois momentos, diversos na reprodução mental, estão tudo menos separados; a ‘empiria’ é a das categorias, e as categorias são as da empiria.” (Kurz, 2012, p. 239/214)

Para Postone, os conceitos desenvolvidos de “mercadoria, valor, capital e mais-valia representam a estrutura profunda da sociedade capitalista” (Postone, 2003, p. 211/160). No entanto, o facto já referido de ele, seguindo Marx, colocar a mercadoria como o primeiro, a partir do qual depois se desenvolvem os outros conceitos, mostra-se particularmente claro no seguinte ponto: “Marx tenta reconstruir a totalidade social da civilização capitalista começando com um único princípio estruturante – a mercadoria – e desenvolvendo a partir dele as categorias do dinheiro e do capital. Este modo de apresentação, visto em termos do seu novo auto-entendimento, expressa as singularidades das formas sociais que são investigadas. Esse método expressa, por exemplo, que uma característica particular do capitalismo é ele existir como uma totalidade homogénea que pode se revelar a partir de um único princípio estruturante.” (Postone, 2003, p. 219/166)

Quanto a isto, para Kurz as primeiras 150 páginas de O Capital de modo nenhum estão encerradas, por exemplo, encontra-se já nelas o conceito de trabalho abstracto que Marx volta a utilizar no terceiro volume (vide supra). Para Kurz, no entanto, o plano do capital global / da relação de fetiche de conjunto é decisivo. Em termos esquemáticos poder-se-ia dizer: para Kurz, primeiro vem o capital global, situação em que a contradição em processo representa neste contexto o cerne da forma do capital; só depois, retrospectivamente e apenas retrospectivamente, Marx “constrói” a forma da mercadoria e o “valor” nas primeiras 150 páginas de O Capital, onde, segundo Kurz, como se disse, o trabalho abstracto é mencionado mas ainda não é realmente tido em conta. Perante este pano de fundo de um “movimento em si mesmo” histórico, Kurz fala depois também da forma do valor, tendo em conta o individual e as dimensões micro. Assim ele objecta a Michael Heinrich: “Mas se a forma do valor é uma determinação apriorística, constitutivamente anterior à produção e ao mercado, ao produto individual assiste, sim, ‘objectualidade do valor’ enquanto carácter de mercadoria, precisamente porque já a priori é um componente de um todo social comum.” (Kurz, 2012, p. 190/168) Ou, formulado ao contrário: “Seria de reter aqui que as categorias obtidas no início da exposição de Marx não desaparecem a seguir, mas são mantidas no posterior desenvolvimento e são evidenciadas no seu verdadeiro contexto de mediação, como categorias não da forma da mercadoria simples, mas sim da relação de capital.” (Kurz, 2007) Para Kurz, no entanto, não se trata aqui de um aperfeiçoamento da teoria de Marx com o correspondente recurso, pelo contrário, as categorias marxianas devem ser vistas como categorias reais, ainda que teoria e empiria não possam corresponder de um modo simples.

Dinheiro – circulação – forma do capital – mais-valia

A diferente abordagem de O Capital de Marx mostra-se também no diferente tratamento da relação entre dinheiro, circulação e capital. Enquanto Postone segue o percurso do pensamento de Marx em O Capital, Kurz por sua vez coloca aqui a forma do capital como um prius. Escreve Postone: “Marx estrutura a sua investigação do dinheiro como um desdobramento dialéctico, derivando logicamente tanto a forma social do dinheiro, que leva à sua análise do capital, como as formas da aparência que encobrem aquela forma social. Partindo da análise da mercadoria como dualidade valor e valor de uso, Marx determina o dinheiro como a expressão manifesta exteriorizada da dimensão valor da mercadoria… Ele argumenta que numa sociedade onde a mercadoria é a forma universal do produto o dinheiro não torna as mercadorias mensuráveis; em vez disso, é uma expressão, uma forma necessária da aparência da sua mensurabilidade, do facto de que o trabalho funciona como uma actividade socialmente mediadora. Entretanto, esse não parece ser o caso, como Marx mostra depois no decurso da elaboração das várias funções do dinheiro (como medida do valor, meio de circulação e dinheiro).” …“A natureza do dinheiro (permanece) no capitalismo velada – o dinheiro não pode aparecer como expressão exteriorizada da forma de mediação social que constitui a sociedade capitalista (o trabalho abstracto objectivado como valor)” (Postone, 2003, p. 399/303, destaque no original). E continua: “Com a expansão da circulação, tudo passa a ser convertível em dinheiro… Este encarna uma forma nova e objectivada de poder social… Nesse ponto, Marx inicia a transição para a categoria do capital.” (Postone, 2003, p. 402/305). Para Postone a forma D-M-D’ é aqui central. “A fórmula D-M-D’ não se refere a um processo pelo qual a riqueza em geral é aumentada, mas a um processo em que o valor é aumentado. Marx chama a diferença quantitativa entre D e D’ de mais-valia. …O valor torna-se capital como resultado de um processo de valorização do valor.” (Postone, 2003, p. 403/306 sg, destaque no original) A fonte da mais-valia é aqui a força de trabalho. “Marx com a sua exposição não pretende apresentar um desenvolvimento histórico, mas um desenvolvimento lógico que procede do núcleo essencial do sistema.” (Postone, 2003, p. 408/310) Aqui “note-se que, assim como a análise de M-D-M, também a análise de D-M-D, bem como necessariamente a de D-M-D’, pressupõe a mercadoria como forma geral dos produtos.” (Postone, 2003, p. 403/306)

Ora que consequências tem para a relação entre a forma da mercadoria, do dinheiro e do capital, o facto de Kurz, ao contrário de Postone, partir não da forma da mercadoria, mas sim da forma do capital? Dinheiro e circulação já são para ele resultado da forma do capital. Segundo Kurz – como ele mostra recorrendo a Le Goff e contra a nova ortodoxia à la Haug – nos tempos pré-capitalistas “ainda não existia circulação, e no capitalismo plenamente formado ela já não existe, pois o conceito já é novamente obsoleto também para o ‘movimento em si mesmo’ do capital já formado e que continua a desenvolver-se com base nos seus próprios fundamentos… Esta fórmula (M-D-M, R.S.) não pode aplicar-se às sociedades pré-capitalistas, uma vez que nem sequer conheciam qualquer produção universal; e não pode aplicar-se ao capitalismo, visto que, neste, a forma do dinheiro já não tem uma função de mediação, mas constitui o princípio e o fim do movimento do fim-em-si, enquanto a própria mercadoria, inversamente, já só se encontra no ‘meio’, ou seja, constitui um mero meio para um fim que lhe é exterior.” (Kurz, 2012, p. 157/139)

Portanto só na história da constituição do capital se formou temporariamente, na época do mercantilismo, uma esfera da circulação. “Pois a universalização e a autonomização do dinheiro em objectualidade do valor ou na sua expressão universal só é possível pela transformação deste em capital, ou seja, um meio de fim-em-si tautologicamente reacoplado a si próprio… A fórmula M-D-M como mera abstracção mental analítica … tem de ser substituída pela fórmula capitalista real D-M-D’… O que agora ‘circula’ é unicamente o capital.” (Kurz, 2012, p. 161/142 sg) E mais: “As metamorfoses do capital consistem no facto de ele assumir sucessivamente as formas manifestas de capital monetário, capital produtivo (capital material e força de trabalho), capital-mercadoria e, por fim, novamente capital monetário. O carácter quase tautológico destas metamorfoses, ou seja, o facto de o capital monetário voltar a converter-se em capital monetário (D-M-D) explica-se, segundo Marx, unicamente com base na sua alteração quantitativa. No processo produtivo, o valor sob a forma de uma quantia de capital monetário converte-se em mais-valia sob a forma de uma quantia maior de capital monetário (D-M-D’) que, no entanto, só é ‘realizada’ pela venda do capital-mercadoria, o que quer dizer que tem de ser reconvertida na sua forma original (acrescentada). São precisamente este fim-em-si fetichista da mais-valia e a repetição interminável deste processo de valorização que fazem do capital o ‘sujeito automático’ da sociedade.” (Kurz, 2012, p. 162/143 sg) Assim também para Kurz a essência do dinheiro se mantém escondida. Para ele “agora o dinheiro já não é dinheiro, ou dinheiro ‘simples’, mas capital.” (Kurz, 2012, p. 161/142) 

Que para Postone, pelo contrário, a forma da mercadoria constitui o cerne, ainda que ele insista em que os três volumes de O Capital devem ser lidos como um todo, estando para ele valor e trabalho no ponto central e tendo os primeiros capítulos de O Capital de ser interpretados a partir daí, é o que se exprime muito claramente mais uma vez na introdução feita no seu livro Tempo, Trabalho e Dominação Social ao complexo de temas “O Capital”: “Com base nessa análise da forma da mercadoria, agora delinearei uma abordagem da categoria capital de Marx. O capital, para ele, é uma mediação social automovente, que torna a sociedade moderna intrinsecamente dinâmica e molda a forma do processo de produção. Ele desenvolve essa categoria em O capital desdobrando-a dialecticamente da mercadoria, argumentando que suas determinações básicas estão implícitas nesta última forma social. Ao indicar a relação intrínseca entre forma da mercadoria e capital, Marx procura elucidar a natureza básica do capital e tornar plausível o seu ponto de partida – sua análise do carácter dual da mercadoria como a estrutura nuclear do capitalismo. Segundo Marx, o que caracteriza o capitalismo – devido à natureza peculiar de suas relações estruturais – é seu núcleo fundamental que incorpora suas características básicas.” (Postone, 2003, p. 397/301) Neste contexto Postone começa as suas discussões pelo “Dinheiro” (Postone, 2003, p. 398/302)

Tanto em Kurz como em Postone o valor é “o pressuposto lógico (e da lógica da exposição) do dinheiro”, mas segundo Kurz “este, enquanto capital, é o pressuposto real.” (Kurz, 2012, p. 51/45, destaque de R. S.) Kurz, como se vê, quando evidencia o carácter do dinheiro no capitalismo, já não parte da forma da mercadoria, mas sim da forma do capital. Do ponto de vista de Kurz, Postone no fundo também na definição do dinheiro permaneceria em última instância pensando a forma da mercadoria como base. Assim escreve Postone: “A maneira como Marx desdobra a categoria capital ilumina retrospectivamente sua determinação inicial do valor como uma relação social objectivada, constituída pelo trabalho, que é portada pelas mercadorias como objectos, mas que existe ‘por detrás’ delas. Isso esclarece o objectivo da sua análise do duplo carácter da mercadoria e sua exteriorização como dinheiro e mercadorias.” (Postone, 2003, p. 406/308) O dinheiro e a circulação não desempenham em geral qualquer papel de relevo em Postone, o que de resto tem depois consequências tais que o crédito, o capital fictício e afins, portanto categorias que seriam relevantes para as reflexões sobre a teoria da crise no contexto da “desvalorização do valor”, da dessubstanciação do capital e do tornar-se obsoleto do trabalho abstracto, não merecem qualquer atenção da parte de Postone. Ao contrário, para Kurz, “… a crise só pode ser explicada e analisada se for entendida como forma específica de desenvolvimento da ‘economia’ do fetiche do capital que se manifesta reificada na forma do dinheiro e, assim, como desenvolvimento e movimento deficitários do ‘sujeito automático’.” (Kurz, 2012, p. 236/211) Se Heinrich, por exemplo, hipostasia o plano do dinheiro, da troca e da circulação, deixando assim desaparecer o contexto global do fetiche do capital, em Postone no fundo ficam de fora esses planos que no entanto são relevantes para a teoria da crise, planos que são justamente o resultado que aparece à superfície da contradição entre substância material e substância do valor, e que deveriam ser analisados também como tais em conexão com esta razão mais profunda (ver Kurz, 2012, p. 321 sg / 288 sg).

A passagem do “paradigma da circulação para o paradigma do ‘trabalho’” feita ao longo da história da constituição do capital pelos economistas contemporâneos mostra, segundo Kurz, como o pensamento se modifica na história da constituição, perante o pano de fundo do desenvolvimento histórico concreto, até que o capital processe nas suas próprias bases (Kurz, 2012, p. 152/134) Kurz recorre aqui, diga-se de passagem, aos estudos de Foucault em As Palavras e as Coisas, e não às suposições do antigo marxismo, por exemplo de Engels, que é responsável por uma teoria do valor pré-monetária.

Kurz e Postone partilham aqui no fundamental a referência temporal à contradição em processo e a importância da passagem da mais-valia absoluta para a mais-valia relativa, em ligação com a dimensão do tempo concreto, do tempo processual, como Postone o evidenciou (mais abaixo voltarei ainda a falar brevemente sobre a dimensão temporal e a falta de uma teoria da crise em Postone). Mas, uma vez que Kurz deriva a forma da mercadoria da forma do capital, resulta nele uma perspectiva diferente da de Postone no que se refere à importância da mais-valia: “O valor” com a forma da mercadoria já não pode agora ser tomado com ponto de partida para a análise do capital, pelo contrário, a mais-valia volta a ser posta em destaque por Kurz, não porém no sentido do marxismo tradicional, para o qual no fundo se tratava apenas da distribuição, mas agora no contexto do “movimento em si mesmo” do capital, tendo por fundo uma forma do capital agora posta no centro. Só tendo em consideração um mais (D’) se pode esclarecer a dinâmica de crise do “movimento em si mesmo” do capital. Assim, a questão não pode ser uma mais-valia, como Postone exige tendo em conta o pensamento da mais-valia do marxismo tradicional, mas sim pura e simplesmente a mais-valia (sem destacar qualquer das duas palavras) no contexto do fetiche do capital, da conexão do conjunto do capital com o cerne da contradição em processo, para lá de um “individualismo metodológico” que toma a mercadoria como primeiro plano da análise. No entanto, quase me parece como se não só Postone mas também a crítica do valor fundamental há muito tivessem procurado, se não evitar, pelo menos de algum modo contornar a mais-valia, porque ela seria responsável pela crítica moralista da parte o marxismo tradicional. Perante este pano de fundo da hipótese central de um fetiche do capital no sentido de Kurz, pode-se ir mais além, retomando de certo modo a mais-valia como categoria de análise “inocente”, que já não pode ser ancorada numa forma da mercadoria reducionista, no sentido de uma forma do valor simples. Em suma: “A questão é que o valor, ou a relação de valor, como resultado da mais-valia ou da ‘relação de mais-valia’ (isto é o capital), enquanto expressão da valorização do valor, constitui o verdadeiro pressuposto” (Kurz, 2007). Assim estaríamos perante o problema da “substância material e abstracta’ do capital, do trabalho como dispêndio de “cérebro, músculo e nervo”. 

Relação entre trabalho abstracto e trabalho concreto

O diferente procedimento no que respeita a estrutura e acção, dimensão micro e dimensão macro, forma da mercadoria e forma do capital e afins mostra-se também no que respeita ao par de contrários trabalho abstracto e trabalho concreto. Tanto Postone como Kurz se viram contra a ontologia do trabalho do antigo movimento operário. Mas, se Kurz parte da constituição do trabalho concreto tendo por fundo o trabalho abstracto, em Postone essa relação é determinada como segue: Ele escreve, sendo que para ele isto é decisivo para a forma social: “Enquanto o trabalho individual, como trabalho concreto, é particular e parte de um conjunto qualitativamente heterogéneo, como trabalho abstracto ele é um momento individualizado de uma forma qualitativamente homogénea de mediação social, que constitui uma totalidade social.” (Postone, 2013, p. 377, destaque no original) Isto parece antes de mais plenamente óbvio ao/à dialéctico/a de sucesso. No entanto, no que diz respeito ao posicionamento assim assumido do trabalho concreto em Postone, é preciso ter presente que o trabalho para ele bem que tem um momento ontológico, já que terá sido efectuado em todas as sociedades, como processo de metabolismo com a natureza. Neste contexto ele evidencia o carácter dialéctico do trabalho concreto e abstracto, situação em que o último, ao contrário do primeiro, tem o papel de mediador social (vide supra). Kurz também parte duma relação dialéctica entre trabalho concreto e abstracto, no entanto tendo por fundo o fetiche do capital como “todo apriorístico” e o correspondente movimento de valorização, enquanto Postone determina esta conexão de valorização no contexto da forma do valor que para ele constitui o verdadeiro fundamento: “Sob a condição deste todo apriorístico, a produção já equivale à unidade de trabalho ‘concreto’ e ‘abstracto’, sendo, em última análise, a unidade entre o produto material e a objectualidade do valor. O que, nesse âmbito, é socialmente válido no trabalho ‘concreto’ é tão-só o seu aspecto de trabalho ‘abstracto’ enquanto dispêndio de energia humana, de trabalho ou de vida (nervo, músculo e cérebro). Assim sendo, o trabalho ‘concreto’ e o trabalho ‘abstracto’ não se repartem por duas esferas separadas, antes são dois aspectos de uma mesma lógica transversal a todas as esferas, deixando, no entanto, o lado concreto ‘valer’ apenas como forma de manifestação do lado (realmente) abstracto. Já o produto é ‘válido’ apenas socialmente, como objecto de representação desta substância abstracta e ao mesmo tempo real, como objectualidade do valor.” (Kurz, 2012, p. 204/181) Portanto, quanto menos Kurz ontologiza o trabalho concreto, tanto mais ele insiste numa substância material e abstracta do trabalho social que Postone – e aqui este é contraditório – vê de facto como “formador do valor”, de seguida no entanto definindo este valor apenas como relação social e apenas nessa medida partindo de uma dialéctica de trabalho ‘concreto’ e ‘abstracto’. Todavia Kurz, ao contrário de Postone, inclui aqui na sua análise as actividades femininas permanentes de cuidar e procura de algum modo pô-las em contacto com as categorias marxianas. Esta omissão em Postone surpreende tanto mais quanto para ele o trabalho concreto teria existido em todas as sociedades. Consequentemente deveria então – supondo que se partilha a opinião de Postone – a relação de trabalho doméstico ser realmente explicada como trabalho também concreto no capitalismo e posta em relação com o trabalho formador de valor – já que o trabalho feminino de cuidar é normalmente considerado como “trabalho” “concreto” sensível imediato par excellence.

Tempo abstracto, tempo histórico concreto, tempo biográfico, tempo do mundo da vida e tempo concreto do colapso do capitalismo

Relativamente à dimensão temporal, também se abre um abismo entre Kurz e Postone (apesar de todos os pontos comuns) no que diz respeito ao tempo concreto e abstracto, ao tempo biográfico, ao tempo do mundo do dia-a-dia e ao tempo concreto do capitalismo em colapso. O tempo desempenha um papel importante para ambos, mas para Kurz desempenha-o em relação à “substância abstracta e real”: “A determinação quantitativa desta substância ‘abstracta e real’, do dispêndio de energia humana dissociado do seu conteúdo, a saber, de ‘nervo, músculo e cérebro’ em termos gerais, é o tempo – ou seja, o ‘tempo de trabalho’ em si, embora a sua validade social não possa ser representada de forma imediata, mas apenas na forma objectivada do dinheiro através do movimento de mediação da concorrência e da ‘realização’ no mercado… O facto de a quantidade da substância só poder ser apreendida na sua unidade temporal levou a que se confundisse esse ‘tempo despendido’ com a substância enquanto tal, ou a que o conceito desta fosse reduzido àquele (assim também acontece, por exemplo, em Postone 2003, R. K.). No entanto, isso faz quase tão pouco sentido como se tomássemos por si o peso em quilogramas, independentemente da matéria determinada que apresenta esse peso, ou quiséssemos equipará-lo à objectualidade pesada. A diferença consiste, contudo, em que o peso é uma propriedade que assiste a materiais naturais em tudo distintos, ao passo que o ‘tempo de trabalho’ apenas se aplica ao dispêndio de energia humana dissociado do seu conteúdo material concreto. Num caso, trata-se de um objecto real e material; no outro, de um objecto abstracto e real que dispõe, ainda assim, de um pano de fundo material (energético). Todavia, em ambos os casos, a objectualidade a medir não é idêntica à unidade em que é medida. Tal como o peso pode ser sempre apenas o peso de ‘algo’, também o tempo pode ser sempre apenas o tempo de ‘algo’, não podendo o próprio tempo apresentar-se como objectualidade.” (Kurz, 2012, p. 147/130)

Postone distingue diversas formas de tempo. Nas sociedades pré-capitalistas a ideia de tempo orientava-se pelos ciclos da natureza, um tempo que dependia de acontecimentos e se orientava por tarefas etc. Em contraste com ele temos no capitalismo o tempo newtoniano abstracto e o tempo histórico concreto, de certo modo o tempo do processo. Tendo por fundo a veemente objecção no que respeita à relação entre tempo e energia do trabalho, Kurz, em contrapartida, louva os méritos de Postone no que respeita à dimensão do tempo e pega nas suas reflexões no ensaio A Substância do Capital, ainda que aí, do ponto de vista actual, ele próprio ainda opere em vários aspectos no plano do capital individual (questão em que não posso entrar aqui). Na “tensão entre a indiferença quanto aos conteúdos e a abstracção do ‘trabalho’ e do valor, por um lado, e o ‘desenvolvimento’ de conteúdos materiais promovido pelo próprio processo de valorização, por outro, é que se funda a dialéctica das duas formas de tempo. O espaço-tempo abstracto da economia empresarial não conhece qualquer ‘desenvolvimento’. Aqui uma hora é sempre uma hora de tempo independente, sem conteúdo, sem qualidades, homogéneo. Este tempo corresponde à dimensão de valor da reprodução, ao tempo abstracto e com ele à objectualidade de valor da matéria, portanto ao valor de uso do fetiche social de produção e realização de mais-valia. Mas o conteúdo materialmente indiferente com ele transportado transforma-se, é determinado sempre de novo, e na realidade não em simples mudança aleatória, mas com cientificização e produtividade crescentes, num processo histórico concreto. Nesta referência ao conteúdo, indiferente ao fim-em-si da valorização do valor, mas que se valida na prática, uma hora não é sempre a mesma hora, mas é sim progressivamente preenchida de novo, transforma-se em tempo de algo diferente, em tempo de ‘desenvolvimento’”. (Kurz, 2004, p. 124 / último capítulo, § 5). Para Postone, no entanto, este processo pode prosseguir indefinidamente. Apesar da sua análise do tempo, em Postone, tal como noutros intérpretes de Marx, resulta – segundo Kurz – que “a história interna apenas aparenta ser uma sequência de acontecimentos fortuitos ou, na melhor das hipóteses, uma eterna oscilação de conjunturas e rupturas estruturais assentes em algo que é sempre igual a si próprio, mas que não teriam por base nenhuma lógica ascendente, de certo modo teleológica, de desenvolvimento e contradição… A ‘teleologia’ deve ser entendida aqui única e exclusivamente no sentido da história interna do capitalismo – mais concretamente, como a imposição de um desenvolvimento permanente (sempre a subir no vector do tempo) com repercussões igualmente progressivas sobre o fim-em-si do processo de valorização… O que está em causa é, portanto, que o desenvolvimento empírico, juntamente com as crises empíricas que dele fazem parte, constitua, ao mesmo tempo, um desenvolvimento e um movimento das categorias reais através do tempo.” (Kurz, 2012, p. 239/213 sg) E acrescenta ainda: “Mais concretamente estamos, por um lado, perante uma lógica que é transversal ao processo histórico global do capital, uma autocontradição interna entre o desenvolvimento das forças produtivas e o fim-em-si da ‘riqueza abstracta’, que desde o início constitui a base, mas apenas ao longo da história se põe em destaque, se revela num grau cada vez mais elevado de pureza e caminha para um ponto culminante. Esta autocontradição interna que determina a dinâmica constitui, de certo modo, o mecanismo secreto da crise em si que, no entanto, apenas ao fim de um longo período de incubação também se manifesta enquanto tal directamente na superfície dos fenómenos.” (Kurz, 2012, p. 242/216) Decisivo aqui, mais uma vez, é o “movimento em si mesmo” e isso quer dizer o fetiche do capital. Em Kurz também não se considera que o terceiro volume de O Capital apresente apenas a superfície da forma da mercadoria desenvolvida, como em Postone, pelo contrário, a essência da “contradição em processo” revela-se neste terceiro volume na própria realidade. Isto também quer dizer que o tempo histórico concreto, o tempo do processo, é decisivo para o culminar da crise no meio da forma do capital, sendo que em Postone, pelo contrário, o capitalismo estagna e reconstrói-se ele próprio repetidamente através das crises, num processo perpétuo. Para Postone não há limite interno se abstrairmos da problemática ecológica.

Relativamente às diferentes formas de tempo, Kurz introduz depois ainda uma forma de tempo na dimensão micro, de que Postone não consegue sequer lembrar-se, porque para ele não há qualquer perspectiva de decadência e colapso: o tempo biográfico, do mundo-da-vida e do quotidiano, que pode provocar cegueiras. De facto, como se viu, Postone esforça-se bastante por incluir o quotidiano, o sentido etc. nos seus quadros marxianos, mas apenas no contexto de uma totalidade em processo que não conhece qualquer crise fundamental. Kurz, pelo contrário, escreve: “O entendimento vulgar sugere que o ‘colapso’ tem de ocorrer de um modo tão instantâneo como um indivíduo cai morto imediatamente ao sofrer um enfarte grave do miocárdio. Se, neste sentido, o capitalismo não se desfez em pó nem após a bolha da Internet do início da primeira década do século XXI, nem, no final dessa mesma década, após o grande crash financeiro de 2008/09, tal é tomado apressadamente pela ‘invalidação empírica’ da teoria radical da crise, visto que a suposta ‘profecia’, afinal, não se teria confirmado mais uma vez. Ou seja, de uma forma quixotesca, a metáfora é entendida literalmente, na medida em que o horizonte temporal da explicação teórica é reduzido a uma espécie de actualidade quotidiana. A diferença entre o tempo actual, ou o tempo do mundo-da-vida, e o tempo histórico é apagada.” Contudo: “Um sistema social global que se formou e desenvolveu ao longo de várias centenas de anos certamente terá um colapso diferente do de um indivíduo; é outro o lapso de tempo até que o sujeito global da valorização, por assim dizer, caia no chão. Tal como o capitalismo percorreu, nos primórdios da Modernidade, uma época de constituição rica em rupturas e convulsões, está agora a percorrer uma época de dissolução interna que, no entanto, devido à sua dinâmica progressiva no plano endo-histórico, tem um horizonte temporal muito mais reduzido… À ascensão lenta e dolorosa corresponde, por isso, uma derrocada relativamente rápida. Mas esta rapidez não se apresenta necessariamente enquanto tal à percepção própria do mundo-da-vida… Da perspectiva da realidade da vida contemporânea, porém, pode parecer tratar-se de um processo temporalmente indefinido, ou mesmo ilimitado, que também poderia ser interpretado de modo completamente diferente… Neste sentido, o tempo histórico do capitalismo esgotou-se. A esquerda comum reivindica para a sua equivocada veneração da suposta capacidade de rejuvenescimento da valorização a perspectiva do tempo histórico; para a rejeição da teoria de um limite interno, porém, retira-se para a sensibilidade temporal do senso comum para poder fazer-se desentendida.” Aqui “a condução da argumentação também é determinada por ‘sentimentos entranhados’ pré-teóricos.” (Kurz, 2012, p. 362 sg / 325 sg) Em síntese: visto assim, o conceito de colapso tem de ser fundamentalmente redefinido e desligado da mera referência ao mundo do quotidiano e da vida.

Mas completamente negligenciada por Postone, e aqui ao contrário de Kurz, é a “lógica de gastar tempo” (Frigga Haug) das actividades de cuidar dissociadas, de certo modo o tempo da dissociação (ainda que Kurz não use tais termos), que no seu entrosamento com o tempo abstracto representa um momento central da actual crise na decadência do patriarcado capitalista (palavra-chave: crise do care), situação em que também será preciso evidenciar o papel que desempenha o tempo da dissociação, em combinação com o tempo do processo do capitalismo, relativamente aos limites da reprodução da sociedade hoje em colapso (por exemplo, Kurz, 2004, p. 110 sg / penúltimo capítulo, § 29 sg). Aqui é preciso saber em primeiro lugar se o “tempo da dissociação” em geral ainda pode ser designado e concebido como “tempo” com as recentes ideias marxistas de tempo à la Postone.

Sujeito revolucionário e socialização de classe média

Ao incluir a subjectividade, o sentido/acção e o quotidiano, Postone exige não em último lugar “uma teoria crítica do capitalismo e da possibilidade da sua superação” que também “(terá de) ser uma teoria da constituição social de tais necessidades e formas de consciência – uma teoria capaz de enfrentar as transformações históricas qualitativas da subjectividade e de entender nesses termos os movimentos sociais do presente. Isto poderia lançar nova luz sobre a noção de Marx da auto-abolição do proletariado e ser útil para a análise dos novos movimentos sociais das últimas décadas.” (Postone, 2003, p. 73/54) Discretamente, ocorre aqui assim um deslocamento do proletariado (seja lá o que for que por ele se entende) como sujeito revolucionário para as classes médias ou novas classes médias e um apreciar das necessidades e formas de consciência destas. Pois estes “novos movimentos sociais” consistem, em suma, numa clientela de classe média. Assim, por exemplo, Bündnis 90 / Die Grünen [Aliança 90 / Os Verdes], como ponta de lança político-partidária destes movimentos, constituem O partido dos que ganham melhor. O foco de Postone coloca-se fundamentalmente no escândalo da alienação e do fetichismo da mercadoria. Também é por essa razão que a questão ecológica assume para ele uma importância central, questão que desempenha hoje um papel central em geral nesse contexto (o receio de um colapso ecológico real desempenha aqui um papel mais secundário, a meu ver). Assim, a interpretação de Marx feita por Postone também deverá saber bem hoje a estas classes médias bem colocadas. A esse respeito, nele a “acção política” é central, no sentido de um chato entendimento político burguês bastante vulgar; a esfera política não é considerada como induzida pelo valor, e que importaria consequentemente abolir, mas sim como plataforma de uma mudança transformadora. Aqui emerge uma forma da “acção” que para Kurz, na sua crítica ao “individualismo metodológico”, é particularmente insuportável: a ideia comum na esquerda de que a modificação transformadora do capitalismo até à sua abolição dependeria da intenção e da acção (política). De facto assim se entende por via de regra o “individualismo metodológico” de modo completa e puramente politicista, o que provavelmente também está na base de outras ideias de acção pelo “sentido”, que fazem estragos entre a esquerda pós-moderna das últimas décadas e não só.

Se Lukàcs ainda falava da “consciência de pertencer a uma classe” em relação à “classe operária”, Postone desloca agora implicitamente estas ideias para as classes médias, ainda que ele apesar disso parta do capital como sujeito-objecto da história. Sim, parece que é isto que o desenvolvimento social quase sugere actualmente com base nesta teoria: seria agora a vez “dos novos movimentos sociais”, aliás, das novas classes médias, em conformidade com as suas necessidades (quotidianas), concretas e conscientes – tal o subtexto de Postone em Tempo, Trabalho e Dominação Social. É notório que a crítica da “aceleração” de Hartmund Rosa, que argumenta de certo modo à semelhança de Postone, recebe hoje muitos aplausos. Também Rosa trata simplesmente de se aproveitar da questão das disparidades sociais (ver Rosa, 2013).

Estas classes médias constituiram-se com a expansão do Estado social após o fim da II Guerra Mundial, no contexto do “mecanismo endo-histórico de compensação” da “expansão do capital” com o predomínio da “mais-valia relativa”, contexto esse que agora chega ao seu “fim lógico”, para usar as palavras de Kurz (Kurz, 2012, p. 274 sg / 245 sg). Em vista desta ameaça de queda e da sua crescente precarização, agora estas classes médias também se tornam mais raivosas; defesa dos direitos adquiridos e discriminação põem assim a velha acomodação dos de 1968 em rota de colisão com os supostos “outros”, o que, entretanto, também Postone sabe; também ele já não está tão optimista como antes (ver Postone, 2013, p. 391). Kurz, pelo contrário, há muito que está consciente da queda das (novas) classes médias e do seu potencial reaccionário, como resulta de muitos dos seus textos. Além disso, também parece que a crítica da forma da mercadoria, como evidente princípio de socialização, ela própria está hoje degradada numa abreviatura reduzida ao prático, aparentemente fácil de entender. A forma da mercadoria é hoje assumida positivistamente como facto, como factualidade positiva, sem se ver o complexo processo da contradição em processo na dimensão social, como “movimento em si mesmo”. Este não pode ser assim tão facilmente reduzido à fórmula “O mundo não é uma mercadoria”, que o superficial movimento Occupy (ou Blockupy) tem realmente por centro, ainda que ele por outro lado não queira saber das tendências (estruturalmente) anti-semitas.

Postone move-se no interior das possibilidades de acção e dos questionamentos das (novas) classes médias, vistas como novo sujeito revolucionário/transformador da suplantação sistémica que efectua a sua transformação reformadora ainda no interior do sistema capitalista, uma impertinência que recorre à ilusão burguesa da vontade e da política; mesmo em trabalhos recentes não abandona este ponto de vista, ainda que ele entretanto se distancie dos “novos movimentos sociais” que antes prezava (ver acima).

Dissociação-valor, totalidade fragmentada e disparidades sociais: algumas observações necessariamente incompletas sobre o contexto da dissociação-valor como contexto social basilar

O deslocamento de Kurz da forma da mercadoria para a forma do capital representa, por assim dizer, uma mudança de paradigma ainda no interior da crítica do valor fundamental. Tanto Kurz em Dinheiro sem valor (aqui referi-me sobretudo a este livro) como Postone estão interessados numa interpretação “alternativa” da obra de Marx, ou seja, numa interpretação no interior do sistema de categorias de Marx, que eles gostariam certamente de trazer para a situação actual. Só isto já colocaria em questão a anterior crítica do valor fundamental. Pois não é possível compreender a totalidade social só com Marx. O que falta é o plano superior da dissociação-valor, como contexto basilar (Scholz, 2011). Também para esta o decisivo é a forma do capital e não a forma da mercadoria, o que no entanto ainda não foi suficientemente evidenciado nos meus artigos dos últimos anos (como também em Kurz, até Dinheiro sem valor). Este entendimento resulta não só de uma crítica imanente a Postone e à antiga crítica do valor fundamental, que a meu ver Kurz desenvolve implicitamente sem a caracterizar em Dinheiro sem valor, mas também da própria realidade de crise modificada, modificação ocorrida após a publicação do livro de Postone e após o surgimento da crítica do valor fundamental (designadamente através da dinâmica de crise por esta mesma prognosticada). Aqui o valor, ou a forma do valor, tem de acabar por ser questionado como verdadeiro ponto de partida, no decurso da argumentação assente nos seus próprios fundamentos. Isto verifica-se, entre outros, no facto de a crítica do fetichismo como fetichismo da mercadoria, recorrendo às primeiras 150 páginas de O capital, se ter tornado actualmente inflaccionária e mesmo uma moda, sendo que a própria aparência da forma da mercadoria é percebida como essência, perdendo-se de vista o todo do capitalismo como “movimento em si mesmo”. Aqui a lógica do capital, que Kurz em Dinheiro sem valor considera de certo modo a lógica fundamental, tem de continuar a ser desenvolvida no contexto da dissociação-valor (mais-valia), enquanto metalógica. É preciso absolutamente partir de uma dialéctica de trabalho (abstractamente material!) e tempo, mas incluindo o gasto de tempo do “tempo da dissociação” e das correspondentes actividades não criadoras de mais-valia, que também determinam o tempo do processo. Neste sentido seria preciso ter em conta um “movimento em si mesmo” da socialização patriarcal-capitalista que O capital de Marx nem conhece como tal. A chamada crise do care pode ser aqui mencionada como a mais evidente expressão do contexto de dissociação-valor actualmente. Com o prosseguimento da dinâmica da contradição em processo e da desvalorização do valor, estamos hoje perante uma crise não só económica e ecológica, mas também das actividades de cuidar, no meio da forma da dissociação-valor como processo histórico (Scholz, 2013). Como se disse, esta dimensão em Postone nem sequer é incluída, pelo contrário em Kurz é tida em conta, mas juntando-a ele à dimensão da forma do valor / do capital (mais ou menos “em pé de igualdade”), na sua contraditoriedade, em vez de a compreender em todo o seu alcance, num metaplano. Neste metaplano a crítica da dissociação-valor modifica a teoria androcêntrica do fetiche do valor / do capital e desloca-a com uma qualidade diferente para o contexto de dissociação-valor em si fragmentado e contraditório, que no entanto é outra vez diferentemente e muito mais fragmentado que a forma do capital tendo por cerne da contradição em processo.

Posto isto, a dissociação-valor, enquanto verdadeira metalógica, não pode voltar a colocar-se a si mesma como absoluto, como faz a forma do valor / do capital (em Kurz e em Postone). Justamente enquanto tal metalógica, em contrapartida ela é por sua vez obrigada a dar seguimento ao particular, ao não-idêntico, ao que não condescende com a “grande” forma. Pois justamente o não-idêntico, o contingente, do mundo da vida, o que não condescende com o conceito de classificação é que não é absorvido no conceito / na forma. Isto resulta da dissociação do feminino, que é responsável não só pelo entendimento burguês da ciência, mas também por uma crítica do valor que se coloca em oposição a este entendimento, incluindo Postone e a Nova Leitura de Marx.

Aqui não são as alternativas aparentemente ignoradas, o não-idêntico, que ficam como verdadeiras, nem deve ser tomada como critério a afirmação abstracta do Diferente contingente do mundo da vida pairando livremente, pelo contrário, aquelas devem ser colocadas em relação com a verdadeira crítica da dissociação-valor como contexto basilar, que só consegue afirmar-se porque é capaz de se desmentir como tal. É preciso fazer valer, por um lado, a relação dialéctica fundamental da relação de dissociação-valor, mas, por outro lado, também a complexidade do desenvolvimento da totalidade concreta, como escalonamento não hierárquico dos planos da abstracção e da concreção, o que exige a elaboração teórica (ver Scholz, 2009). Neste sentido terá depois de ser muito bem tida em consideração a constituição da objectividade e da subjectividade sociais, na sua mediatidade. Isto também significa co-incluir, entre outros, o plano cultural-simbólico – que não está de certo modo já sempre automaticamente incluído em Marx, como se considera em Postone – assim como o plano psicanalítico. Estes planos devem ser sempre entendidos como mediatos, mas na sua lógica própria, tendo por fundo o contexto de dissociação-valor. Nisso trata-se aqui de “sintetizar sem sistematizar unidimensionalmente” (Regina Becker-Schmidt), sem equiparar as premissas das diferentes abordagens teóricas.

Aqui o não-idêntico não é o que está de fora, como em Adorno e em Postone, ele corresponde mais propriamente ao nível das forças produtivas no fordismo, numa figuração histórica determinada, o que se torna a ideologia central na pós-modernidade tardia. Obviamente que os limites da teoria em geral ficam à vista quando se trata de suplantar as relações patriarcais-capitalistas.

Uma teoria da dissociação-valor assim determinada, que está obrigada ao auto-desmentido para poder afirmar-se, nessa medida também tem aqui de pensar contra si mesma, quando analisa não apenas o sexismo, mas também o racismo, o anti-semitismo, o anticiganismo, a homofobia e afins como dimensões próprias da discriminação social “com iguais direitos”. O decisivo é a coisa, o conteúdo, o objecto concreto perante o qual a decisão concreta é tomada, no entanto sempre tendo por fundo a crítica da dissociação-valor na sua absolutidade, num sentido fragmentado (ver Scholz, 2005). Postone formula tais disparidades apenas sob a epígrafe “Universalidade e Particularidade”, onde ele assume em última instância o duplo carácter da mercadoria – valor e valor de uso – como pano de fundo desta relação de tensão (é também neste contexto que ele analisa o anti-semitismo no seu destacado ensaio Anti-semitismo e nacional-socialismo – Postone, 1988).

Neste sentido, perante a afirmação absoluta da dissociação-valor com a sua simultânea revisão, também tem de ser aqui (re)formulada e denunciada justamente a dimensão material da sociedade (mundial) pós-moderna, que um ponto de vista de classe média, lamentando-se por toda a parte, faz valer quando muito tendo em vista um interesse particular, auto-ignorante – e arvorado em interesse geral. É preciso ir para além disso com a crítica da dissociação-valor (ver Scholz, 2008).

As últimas considerações estão formuladas com referência à teoria crítica do não-idêntico de Adorno, no entanto é preciso também passar por cima desta mesma – como se viu – à maneira da dialéctica (negativa) (ver Scholz, 2012). Deste modo fragmentado e contraditório – como é preciso dizer em resumo – a crítica da dissociação-valor/mais-valia tem de colocar-se como absoluta para conseguir chegar à análise teórica do sistema global patriarcal-capitalista tornado independente que cada vez mais se desmorona realmente.

Uma crítica da dissociação-valor assim entendida está muito longe da crítica do valor fundamental nos seus primórdios e de Postone. 

No entanto a interpretação de Marx feita por Postone permanece uma origem essencial da crítica da dissociação-valor, um clássico, para não falar dos trabalhos de Kurz, que por maioria de razão representam um estádio de passagem para ela e em primeiro lugar a possibilitaram teoricamente. Todavia mesmo estes têm de voltar a ser radicalmente transformados e levados mais longe nesta dicção, para além de uma dicotomia/dialéctica de estrutura e acção patriarcal convencional. 

(1) As citações de A substância do capital e Dinheiro sem valor de Robert Kurz e de Tempo, Trabalho e Dominação Social de Moishe Postone seguem de perto as traduções em língua portuguesa abaixo mencionadas de OBECO, ANTÍGONA e BOITEMPO, respectivamente. Na indicação das páginas do texto citado refere-se primeiro a página da edição em língua alemã citada pela autora e depois, separada por /, a página da edição em língua portuguesa (Nota do tradutor)

BIBLIOGRAFIA

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Scholz, Roswitha: Feminismus – Kapitalismus – Ökonomie – Krise. Wert-Abspaltungstheoretische Einwände gegenüber einigen Ansätzen feministischer Ökonomiekritik heute. In: Exit! Nr. 11 (2013), S. 15-63. Trad. port.:Feminismo – capitalismo – economia – crise. Objecções da crítica da dissociação-valor a algumas abordagens da actual crítica feminista da economia http://obeco-online.org/roswitha_scholz17.htm

Original NACH POSTONE. Zur Notwendigkeit einer Transformation der fundamentalen Wertkritik. Moishe Postone und Robert Kurz im Vergleich – und die Wert-Abspaltungskritik Publicado na revista EXIT! Krise und Kritik der Warengesellschaft, nº 12 (11/2014), pag. 142/165, [EXIT! Crise e Crítica da Sociedade da Mercadoria, nº 12 (11/2014)], ISBN 978-3-89502-374-3, 192 p., 13 Euro, Editora: Horlemann Verlag, Heynstr. 28, 13187 Berlin, Deutschland, Tel +49-(0)30 49307639, E-mail: info@horlemann-verlag.de, http://www.horlemann.info/.

Tradução de Boaventura Antunes (02/2015)

http://obeco-online.org/

http://www.exit-online.org/

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