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Natureza em ruínas – Robert Kurz

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 14 leitura mínima


A ciência moderna, até onde sabemos, é o projeto mais bem-sucedido da história da humanidade. Mas de longe o mais catastrófico também. Sucesso e catástrofe não se excluem necessariamente, muito pelo contrário: o maior dos sucessos pode encerrar o maior potencial de catástrofe. Ora, a partir do século 17, foi acumulado mais conhecimento sobre a natureza do que em todos os séculos anteriores, mas à esmagadora maioria das pessoas tal conhecimento se mostrou o até hoje, em termos gerais, apenas de forma negativa. Com o auxílio da ciência aplicada à tecnologia, o mundo não se tornou mais belo, e sim mais feio. E a ameaça da natureza que pesava sobre as pessoas não diminuiu na natureza tecnologicamente remodelada pelas próprias pessoas, e sim aumentou.

Calamitosa aliança 

Se a “primeira natureza” da pessoa biológica foi desde sempre plasmada e refundida pela cultura, nascendo assim uma “segunda natureza” social, essa “segunda natureza”, na modernidade, interveio com violência ímpar na “primeira natureza” e a modelou à sua imagem. O resultado é uma violência natural de segunda ordem que se tornou ainda mais incalculável que a violência natural de primeira ordem, a que já se estava familiarizado. É uma calamitosa aliança dominante de economistas, cientistas, técnicos e políticos que administra o processo de desenvolvimento científico-tecnológico na forma do sistema social moderno e que, não só com ignorância, mas também sem levar em conta os danos, defende contra toda a crítica a dinâmica autônoma nele implícita e a perpetua no tempo.

De outro lado, a crítica da ciência por parte de marginalizados e dissidentes está duplamente condenada ao fracasso, pois não consegue pôr em xeque nem a forma social nem a estrutura do conhecimento científico, circunscrevendo o problema quase sempre à conduta moral dos cientistas, isto é, à questão ética da “responsabilidade”. Em oposição a essa batida empreitada ética, a nova corrente feminista da crítica da ciência desce bem mais fundo. Tal crítica demonstra que o paradigma epistemológico da ciência moderna está longe de ser “neutro”, evidenciando antes certa matriz cultural, sexualmente definida. O conceito de “objetividade”, tal como se revela em Francis Bacon (1561-1626), nos albores da história científica moderna, é unilateralmente determinado pelo homem, e a respectiva pretensão não se dirige antes de tudo ao conhecimento e à melhora da vida humana, mas à sujeição e ao domínio. Teóricas norte-americanas como a bióloga molecular Evelyn Fox Keller e a filósofa Sandra Harding tiram daí a conclusão de que a separação estrita entre sujeito e objeto, tal como subjaz à ciência moderna, tem de ser posta em tela de juízo. Mas para elas não se trata de uma crítica romântica da ciência, mas de uma “outra ciência”, que libere seu processo cognitivo da exigência de submissão.

É nesse sentido que elas traçam um paralelo entre as racionalidades científico-tecnológica e econômica na modernidade, que ambas remontam a interesses de domínio e exploração. A ciência natural moderna e a moderna economia capitalista não são absolutamente idênticas, mas guardam estreitos laços de parentesco. Para além do princípio feminista de Fox Keller e Harding, esse parentesco revela-se tanto em perspectiva histórica quanto estrutural. Ciência, economia e aparato estatal na modernidade remontam a uma raiz comum, qual seja, a revolução militar das armas de fogo no princípio da era moderna. Daí também o viés especificamente masculino da modernidade. A revolução social ocasionada pelos canhões rompeu as estruturas da economia agrária com a formação de Exércitos regulares, de uma grande indústria armamentista até ali desconhecida e com a ampliação da indústria mineradora.

Não somente o capitalismo foi assim gerado, mas também uma imagem da natureza a ele adequada. A estrita separação entre sujeito e objeto, fenômeno especificamente moderno, é fruto dessa história: tal como o sujeito masculino da revolução militar definiu o mundo literalmente como “bucha de canhão”, como puro objeto de aniquilação, assim o aparelho estatal e a racionalidade econômica definiram o indivíduo como objeto de gestão, como objeto da ciência empresarial. O surgimento da ciência foi desde o início integrado a esse desenvolvimento. Não é à toa que as invenções tecnológicas protomodernas se prenderam em diversos sentidos à inovação militar das armas de fogo, haja vista os projetos de Leonardo da Vinci, que, como tantos de seus contemporâneos letrados, construiu canhões, antecipando até, como se sabe, o desenvolvimento de submarinos e helicópteros de guerra.

Objetos de manipulação 

Mas não foi uma simples finalidade externa que prendeu a ascensão da ciência à revolução militar e ao capitalismo daí nascente, mas sim o fundamento epistemológico dessa própria ciência. A racionalidade científica definiu seu objeto também como um objeto a ser sujeitado, o que já se acha na eloquente metáfora da linguagem científica “objetiva”, como mostrou Evelyn Fox Keller. O abandono dos dogmas da teologia não foi uma verdadeira emancipação do conhecimento, foi um ato que permaneceu sob o signo do nascente complexo militar-industrial e de sua teologia econômica secularizada.

Nesse contexto, era inevitável que a natureza parecesse um objeto estranho e hostil. Objetividade converteu-se em objetivação, conhecimento em violação. A visão de mundo comum, subjacente às diversas formas de objetivação, é uma visão mecanicista. Isso porque somente objetos mecânicos se deixam objetivar e manipular inteiramente. Tal como o Estado moderno reduz o indivíduo vivo a uma abstração jurídica, tal como a lógica da economia exige que a sociedade seja reduzida à matéria morta do dinheiro, assim também a ciência reduz os processos naturais a um nexo mecânico. Esse reducionismo não se segue forçosamente do conhecimento da natureza em si, antes é um produto da tendência histórica da objetivação subjugadora.

Na práxis social, o reducionismo econômico, político e científico casou-se a uma estrutura totalitária em que pessoa e mundo são definidos como objetos hostis de manipulação. A economia industrial só pôde fazer uso tão rigoroso da ciência porque a racionalidade científica procede da mesma raiz e obedece desde o berço a um imperativo mecanicista análogo. Até hoje estamos às voltas com um complexo de caráter militar, econômico e científico. Era inevitável, pois, que o sujeito manipulador, alguém que, como cientista, político e economista, se separou em termos absolutos de seus objetos, acabasse ele próprio objetivado e manipulado -um mero serviçal, rebaixado a executor dos complexos militar-industrial e econômico-tecnológico.

Caráter destrutivo

A força destrutiva desses complexos entrelaçados e sua dinâmica alucinada há muito ultrapassaram a linha vermelha atrás da qual iniciam as “catástrofes naturais” causadas pela economia e ciência. Ao atingirem o capitalismo científico e a ciência capitalista certas fronteiras naturais e ao tentarem rompê-las à força, sua lógica reducionista e mecanicista ameaça transformar-se, para além da insidiosa destruição dos fundamentos naturais da vida, na criação de tecnologias francamente apocalípticas de autodestruição.

Até meados do século 20, o complexo econômico-científico limitou-se a submeter à sua lógica da objetivação a matéria existente na natureza e consumi-la como objeto. O caráter destrutivo não era mais que um efeito secundário, indireto. Nos últimos 50 anos, ao contrário, o sistema passou não apenas a intervir na natureza, mas a produzir uma “outra natureza”, de aspecto físico e biológico inteiramente diverso, porque a simples manipulação externa da natureza terrena se esgotou. Não reconhecendo nenhuma outra lógica que não a própria, e portanto nenhum limite natural, o complexo econômico-científico é insensato o bastante para querer se emancipar plenamente da natureza.

Após a Segunda Guerra Mundial ficou patente que a energia fóssil, armazenada durante milhões de anos na Terra, esgotaria ao menos em sua forma economicamente aproveitável em razão da pilhagem moderna. A cultura da combustão capitalista ameaçava, pois, atingir seus limites naturais. A resposta para tanto foi a tecnologia atômica, ou seja, a tentativa de liberar uma forma de energia não existente na natureza terrena e dela independente.

Autodestrutiva não só pela ameaça de catástrofes como as de Tchernobil ou Harrisburg, essa tecnologia, ainda quando livre de acidentes, acumula montanhas de lixo radioativo, cujos efeitos nocivos já não podem ser contornados e neutralizados pelos próprios processos naturais, perdurando durante dezenas de milhares de anos -um intervalo cultural inconcebível. Essa dimensão apocalíptica da tecnologia atômica, porém, não se deve à necessidade de conhecimento da natureza em si, mas à pretensão imperiosa da ciência moderna de objetivar a natureza e relegar à ruína tudo quanto se oponha a essa objetivação.

A mesma lógica referente à base energética revela-se no plano da transformação de matérias-primas. Até fins do século 20, o emprego tecnológico da ciência no espaço econômico do capital concentrou-se nas transformações físicas e químicas da produção industrial. A agronomia, entendida como “agrobusiness”, foi cada vez mais organizada segundo o padrão industrial da linha de montagem, mas as intervenções diretas no “material” biológico se limitaram em boa parte a métodos tradicionais de criação de animais e plantas. Não é à toa que, ao término do século 20, também essa fronteira seja transgredida. Pois na terceira revolução industrial da microeletrônica ficou claro que o consumo industrial de matéria inorgânica se esgotou como suporte do crescimento econômico -nem sequer a dita sociedade de serviços é capaz de compensar tal esgotamento. A resposta do sistema é, por sua vez, desmedida e irracional: a natureza orgânica, a própria vida, deve ser decomposta em seus elementos constitutivos e transformada para criar uma “outra biologia”, independente da evolução natural terrestre.

Criaturas do capital 

O complexo econômico-científico, com auxílio da tecnologia genética, quer produzir à sua imagem plantas, animais e, em última instância, pessoas que, mesmo no plano biológico elementar, sejam “segunda natureza” e, portanto, criaturas do capital, cuspidas e escarradas.

Do puro e simples conhecimento científico do genoma não se seguiria automaticamente a tecnologia genética. Isso porque boa parte dos nexos não pesquisados é complexa demais para que as possíveis consequências das intervenções tecnológicas nesse campo possam ser dominadas. Não se trata mais de um procedimento científico limitado a materiais exemplares esparsos; é todo o contexto vital que se transforma em objeto de laboratório.

Erros, contratempos ou mecanismos desconhecidos podem a todo instante conduzir a imprevisíveis reações biológicas em cadeia, a deformações genéticas e a novas epidemias incuráveis. A própria humanidade vira uma cobaia coletiva para experimentos biotecnológicos de risco. E nem é preciso que a ciência se sujeite externamente ao imperativo econômico, basta que haja a tecnologia genética, fruto de sua própria lógica da objetivação e sujeição da natureza.

O lampejo de lucidez da consciência ecológica há muito se esvaiu. Com o programa energético do presidente Bush, a superpotência capitalista americana torna à construção leviana da tecnologia atômica; o resto do mundo seguirá esse programa. E em toda parte diminuem as resistências à estrita aplicação da tecnologia genética, em toda parte os governos afrouxam os padrões de segurança, em toda parte esmorece o discurso “ético” ante as “injunções” econômico-tecnológicas. Para frear as tecnologias apocalípticas não é necessária apenas uma outra forma de sociedade, mas também uma outra ciência, no sentido de Evelyn Fox Keller e Sandra Harding.

Se o conhecimento científico não se emancipar da lógica de uma objetivação desumana da natureza, o complexo econômico-científico logrará transformar a Terra num deserto da física.

São Paulo, domingo, 17 de junho de 2001

 

 

Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor de “O Colapso da Modernização” (ed. Paz e Terra) e “Os Últimos Combates” (ed. Vozes).

 

Tradução de José Marcos Macedo.

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
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