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O Anti-Valor

arlindenor pedro
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O anti-valor

“Não basta que o
pensamento tenda para a
realidade, é preciso que a
própria realidade tenda
para o pensamento”
Karl Marx

1. A mercadoria é o nexo que estrutura a sociedade moderna. Todos os indivíduos, coisas e atividades sociais tomam a forma de mercadoria. Enquanto forma social, a mercadoria é uma estrutura que está sob e sobre todos os elementos dessa sociedade. A lógica da identidade, que é inerente e essencial ao processo de troca mercantil, envolve e domina toda a sociedade, transformando todos os indivíduos e coisas em meras mercadorias, idênticas entre si. Como “formas de existência do valor” (Marx), as variadas mercadorias confrontam-se independente do conteúdo material que cada uma delas possui. A anulação dos conteúdos pela forma mercadoria (anulação que não é vulgar, mas dialética, ou seja, que mantém esse conteúdo negado), que envolve os produtos do trabalho social, corresponde, no caso da mercadoria humana, à negação da subjetividade adquirida por cada indivíduo em seu desenvolvimento social. O conteúdo religioso, artístico, cultural etc. de cada indivíduo em particular é submetido à mesma forma, que lhes adiciona uma funcionalidade específica. A forma social é o próprio invólucro no interior do qual são sentidos, pensados e experimentados cada um desses conteúdos “concretos”. A forma social moderna, dominada pelo processo de produção de mercadorias, é, portanto, responsável pela concessão das “formas cognitivas” por meio das quais os indivíduos reais concretos – os sujeitos empíricos – se relacionam com todo o processo social. O sujeito transcendental da Modernidade nada jmais é do que a abstração do conteúdo “cultural” de cada sujeito empírico; é a forma pura da forma sujeito moderna.

2
Tendo a mercadoria como sua “forma elementar”, a sociedade moderna se diferencia qualitativamente das sociedades em que o mercado funcionava apenas de forma marginal ou complementar. O sistema produtor de mercadorias erigido na modernidade não é apenas quantitativamente distinto das antigas sociedades com mercado, pois sua origem, como sociedade de mercado, remonta à cisão e autonomização da “economia” em relação ao conjunto da vida social. A mercadoria pré-moderna extinguia-se no seu valor de uso, na troca entre produtores concretos, não existindo uma esfera econômica diferenciada. O moderno sistema produtor de mercadorias, ao contrário, funciona como esfera separada, maquinal e independente da vontade dos indivíduos. Nessa máquina de utilização do trabalho para produzir mercadorias, o sujeito não é outra coisa senão um “suporte” funcional dentro de um movimento tautológico, cujo motivo cardeal é a lógica sem sujeito da valorização capitalista.
3
Como os indivíduos em geral são envolvidos pela forma mercadoria – igualando-se enquanto “forma” às próprias coisas que também são produzidas como mercadorias -, a forma mercadoria apresenta-se como algo “externo” aos indivíduos. Essa externalização, que ocorreu no âmbito de um processo social – a relação entre dois objetos com o mesmo valor -, foi um evento histórico lento e correspondeu a fetichização desse mesmo processo social. O processo de troca da Modernidade – movimento em que as coisas e as pessoas se realizam como mercadorias – torna-se autárquico, independente dos indivíduos envolvidos e alheio às suas necessidades. A forma autonomiza-se diante do conteúdo e da matéria, dominando-os. Não importa para a mercadoria, para a forma fetichista moderna, o que os indivíduos particulares pensam, sentem ou fazem; todos adquirem a forma abstrata, que anula esses mesmos conteúdos, desde que tudo lhe esteja submetido.
4
Tendo o processo econômico se autonomizado, ele domina as demais esferas da vida social. As esferas funcionais – repartidas pela abstração (separação) inerente à forma mercadoria – são submetidas a essa mesma forma, e cada uma delas (política, arte, religião) torna-se também processo de trabalho, porém com conteúdo distinto. A esfera da política, assim como o espaço institucional na qual se realiza, o Estado, não possui autonomia, pois é determinada pela esfera fetichista da economia. Assim, a democracia caracteriza-se como a forma política correspondente ao mercado relativamente sem peias: tudo pode ser discutido e todas idéias podem ser postas em debate, desde que se submetam à mesma forma.
5
Autonomizando-se diante dos sujeitos empíricos e impondo nestes sua própria forma, a mercadoria é sentida sempre como externa, mas externa enquanto coisa ou forma das coisas, nunca como forma correspondente ao próprio sujeito. Como é o indivíduo que, conscientemente, leva um determinado objeto para vendê-lo no mercado, o pensamento individual abarca essa relação apenas enquanto “conteúdo” da consciência, do mesmo modo que as identidades nacionais, culturais, raciais e classistas são construídas levando-se em conta apenas o conteúdo de uma forma sujeito específico, não à própria forma que a todos envolve. Como a forma de pensamento de cada sujeito empírico é definida a priori pela forma social geral, o pensamento é sempre interior à forma do próprio fetiche. O limite da consciência é dado, portanto, pela própria relação fetichista através das categorias, das “formas cognitivas” que são adjudicadas aos indivíduos pela forma social fetichista. Posto que o pensamento é interior à forma do sujeito, a consciência dos indivíduos empíricos não pode ter consciência das formas que estruturam suas relações sociais, embora eles possam sentir os efeitos dessa forma por meios inconscientes. O sujeito é, portanto, uma forma de consciência, mas irrefletida em relação à sua própria forma.

6
A individualidade moderna é sempre produto de um meio ambiente especificamente submetido à forma social automática da produção de mercadorias, ou seja, é sempre a individualidade presa à forma sujeito. Os indivíduos desenvolvem-se não apenas no interior dessa forma, mas também se encontram presos a determinadas funções sociais definidas pelos mesmos mecanismos mercantis, isto é, pela esfera estrutural da economia. A propriedade de capital, a propriedade de força de trabalho ou a propriedade fundiária são características de classe e individuais que definem a função social de cada membro da sociedade no processo social e que definem a parcela do produto social a que cada um tem direito. Distinto de períodos históricos em que a propriedade era definida por outras modalidades de fetiche, tais como a consangüinidade ou o status desenvolvido no interior de formas religiosas – numa relação nas quais a propriedade e a parcela do produto social eram definidas pela função – o período moderno caracteriza-se pelo fato da propriedade definir a função. A função social é definida pela propriedade, mas a propriedade, por sua vez, é submetida à forma econômica do fetichismo, o que implica na sua existência como propriedade privada, rebaixada a uma parcela de valor ou a possibilidade de apropriação de uma parcela de valor. A relação classista, longe de ser a constituinte da própria relação social moderna, é ela mesma interior à forma fetichista do valor e da mercadoria. Os membros de cada classe, burgueses ou proletários empíricos, são, então, meras “personificações de categorias econômicas” (Marx), postuladas pelo processo fetichista.
7
Identificando-se os sujeitos empíricos como membros de uma classe que tem uma específica função social e como reproduções individualizadas (e concretizadas) de uma forma social geral, então é necessário identificá-los também como objetos da própria forma que os constitui. A definição de sujeito, seja ele o transcendental ou o de classe, apresenta-se imediatamente como falsa, pois não se considera que os próprios sujeitos são objetos de algo diverso e superior, ao serem postos nessa forma (sujeito) por um processo automático, que para eles é inconsciente. Esse “algo” não é, entretanto, “outro” sujeito mais elevado, absoluto ou uma estrutura invariante em sua forma, mas a própria forma automática do processo social que contém em seu interior a subjetividade e a objetividade. Assim, a própria definição de sujeito é atravessada pela definição de objeto, dada a identidade negativa que há entre os dois (são e não são o mesmo). Isso implica que não é a mera consciência de ser objeto que pode transformar um objeto em sujeito, dado que a consciência de ser sujeito é interior à forma fetichista, responsável por tornar o sujeito objeto.

8
A repartição em esferas – operada pela abstração (separação) imanente à forma mercadoria – age também sobre a relação entre gêneros, incorporando relações patriarcais pré-modernas e ditando-lhe novas propriedades. A mulher é assimilada à natureza e, como tal, torna-se objeto a ser subjugado e dominado pelo “processo civilizador” operado pela forma mercadoria. O sujeito civilizador determina-se, então, como masculino e branco, operando numa esfera pública racional, enquanto a esfera privada identifica-se com as propriedades sensíveis, sendo relegada à mulher. Tudo aquilo que é estranho à forma racional e abstrata do sujeito, isto é, a natureza, a sensibilidade, a feminilidade e a “selvageria” não-européia, devem servir como objetos de manipulação e exploração, efetivando-se essa subjugação por meio da ciência, que têm seu corpo de referências imanente à forma mercadoria: a abstração, a calculabilidade, a objetividade etc. A ciência é, portanto, a consciência instrumentalizada da forma mercadoria que tem por objetivo, desde a sua origem, contribuir para a realização do domínio do homem sobre a natureza.
9
A crítica da forma sujeito é passo necessário da crítica da forma social automática, inconsciente para esses atores. Essa crítica torna-se possível pelos próprios processos sociais modernos, que são essencialmente movidos por contradições e conflitos, apontando sempre para a sua própria negação. Essa negação, novamente, não é vulgar, mas dialética e não pode levar para algo outro que não seja o mesmo. Diferente do reformismo e do socialismo evolucionista, portanto, essa negação interior ao processo de modernização não constrói uma nova forma social. Sendo movida por uma forma elementar abstrata – a forma mercadoria – que produz um indivíduo abstrato – o sujeito -, a forma fetichista moderna deve inserir nessa forma sujeito uma aptidão consciente específica, caracterizada pela capacidade elevada de abstração. Essa abstração é tanto um instrumento inconseqüente do indivíduo empírico, pois através de uma forma específica de razão formaliza, reprime e sublima abstratamente aquilo que é nele “sensível”, mas é também um meio que permite à elevação da crítica à forma social: abstração social só pode ser apreendida por uma consciência abstrata. Essa crítica, evidentemente, só pode ter sentido negativo, já que não se trata de afirmar essa abstração como pretensa “razão superior”, mas de lançá-la contra seus próprios pressupostos, buscando superar a ambos, isto é, essa unidade de ser e consciência abstrata. Também uma crítica da forma social só pode ser plenamente realizada quando já se atingiu o máximo desenvolvimento dessa própria forma, pois aí já se “atualizaram” todos os seus elementos internos e externos. A crítica do sujeito ganha sentido efetivo – portanto diferencia-se da crítica estruturalista – quando é aliada à crítica da forma social que é por ele responsável.

Publicado no Site do Anti Valor

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
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